quarta-feira, 25 de novembro de 2015

“CONTRA OS CANHÕES”



Ex-Aferes Lino Rei autor do livro "Também Eu Estive Lá"......


Texto publicado no Jornal “Correio do Minho”, 15/07/2010 (Braga) e seleccionado de
entre “as melhores histórias” na rubrica “Conta o leitor” de “Quem conta um conto acrescenta um
ponto”.                                                        

                                                              “Contra os canhões…”

António viu-se mobilizado para a guerra e, com ele, mais uns milhares de mancebos por esse país fora.
Já em Luanda, reencontrara no Grafanil – centro de mobilização geral de Angola – um conterrâneo seu que já tinha começado a sua comissão e aguardava novas ordens, para outros destinos.
– Então, pá, também por aqui? – Admirou-se o Fiúza, de Operações Especiais e a fazer serviço na
unidade, enquanto aguardava ida para o Leste.
– Como vês, parece que calha a todos!…
– Olha, a malta só aguarda transporte dos páras e fala-se numa mega operação lá para o Leste; estamos só a afinar as armas…
– Porra, parceiro, isto está assim tão mau?
– Bem, como ainda estás a chegar, será melhor veres por ti. A propósito, para onde vais?
– Sei lá, pá, é lá para o Norte, uma parvónia qualquer…
– Vê que não te calhe a rifa de Nambuangongo, aquilo é fogo da pesada!
– A nossa malta é “tropa macaca” mas o Capitão é dos comandos, nem imagino como vai reagir. Seja o que Deus quiser!
– Boa sorte, a gente ainda se vê por aí. A propósito, sabes quem está na prisa?
– Conta.
– O Salsichas. O gajo pirou-se e andou à porrada com o alferes e pô-lo no hospital!
– E agora?
– Agora, vai alinhar por duas comissões de serviço, se entretanto sair da gaiola!…
(…)
Tentando quebrar a tensão da picada, procurou no bolso do camuflado um cigarro. Entretanto, no
transístor do condutor, a Rádio Luanda anunciava manifestações patrióticas no Puto. Um político de
ocasião ainda discursava: (…) “A quantos souberam bater-se para que todos possam viver (…) Por isso, nesta manhã dos heróis prestamos sentida homenagem aos varões assinalados que fizeram história no Ultramar português” (…)

Que raio fazia António ali, a milhares de quilómetros da sua terra?
A seu lado, o furriel progressista reavivara poemas de Manuel Alegre pois os “ventos” começavam a
soprar outras trovas.
Ouviu-lhe:

Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
O vento cala a desgraça
O vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.

Afinal de que lado estava António?
Um cabo alfacinha aproveitou a boleia poética e trauteou um dos tops da altura, pelo Conjunto de
Oliveira Muge, de Ovar. A canção A Mãe que rivalizava com o Le Ruisseau de mon enfance (Adamo), Caracóis (Amália), Delilah (Tom Jones), Hey Jude (Beatles), Nights in White Satin (Moody Blues) e Congratulations (Clif Richard), no Eurofestival desse mesmo mês de Abril.

A MÃE
Mamãe, tu estás tão longe de mim
Mamãe, sinto que estás a chorar
Não chores a minha ausência
Que um dia hei-de voltar
Não chores e pensa agora
Que o tempo passa depressa
Pede a Deus que te tire esse tormento
Que te abrande o sofrimento
Desse teu formoso rosto
Mamãe, não chores, eu volto, Mãe.

A fila indiana das Berliets que os conduziam para o Uíge nunca mais chegava. Terra batida, barrenta,
pegajenta de mosquitada. E subiam, e desciam …
Pelas cinco da manhã, ao fim de doze horas daquela tormenta, sonolentos e alquebrados, feitos
manteiga por tanto solavanco, alguém berrou da primeira viatura:
– Eh, Companhia, chegamos! Toca a descer e a perfilar para a revista.
Como morcegos assustados, ainda meio sonâmbulos, as viaturas militares iam vomitando toda aquela “carne para canhão”, preparada de armas e bagagens para umas férias, mato fora, sabe-se lá por quanto tempo.
A nascente, a aurora avermelhada aproximava-se a passos de gigante e olhava curiosa aquela tropa
maçarica que nem imaginaria ao que vinha nem por que viera.  À porta de armas do Batalhão, a
sentinela tivera talvez o pesadelo maior da sua vida:
– Meu Sargento, chegaram os Comandos!
O Sargento de Prevenção, chateado por o interromperem do passar pelas brasas e farejando ao longe
aquelas fardas engomadas, logo lhes “tirou as medidas”. Acabou por berrar para o praça:
– Quais Comandos, minha besta-quadrada, são os maçaricos do Puto que vão p’ra Mucaba. Vai acordar o nosso Tenente e Oficial de Prevenção .
Uma hora depois, o Comandante da Unidade, acompanhado do Oficial de Prevenção, aparecia à porta de armas:
– Atenção, Companhia, apresentar armas! – Grunhiu o Capitão.
Um estalejar de mãos nas G3, acompanhando os coices das botas dos soldados no alcatrão da parada,
ressoaram quartel dentro, substituindo-se ao toque de alvorada do corneteiro. Dois boxers,
contrariados por invasão do território, galgaram a porta de armas, arreganhando os caninos àqueles
intrusos. Finalmente, o Comandante, um tal de Tenente-Coronel, quiçá ainda meio ensonado pela
ressaca do dia anterior, correspondeu, contrariado, à ordem de comando e batendo pala aos homens,
autorizou o Capitão a fazer descansar a Companhia.
– Descansar… armas!
O Tenente-Coronel Amoroso ladrou as boas-vindas aos recém chegados.
No seu discurso patriótico apelou a dar cabo de todos os turras na zona e prometia até umas
feriazinhas surpresa no Puto, a quem lhe trouxesse algum troféu como prova.
– “ (…) Portugal é um Império e Angola faz parte dele – ressoava ainda o seu vozeirão, assustando a
passarada que esvoaçou em momento tão solene – por isso, soldados, sede dignos da farda que usais
como os bravos heróis de Pidjiguiti, Mueda e Baixa de Cassange” – rematou.
A Companhia haveria de deslocar-se ainda uns bons 40 quilómetros mais para Norte.
No trajecto, o transístor cantarolava:

ANGOLA É NOSSA

Ó povo heróico português,
Num esforço estóico outra vez
Tens de lutar, vencer, esmagar a vil traição!
P’ra triunfar valor te dá o teres razão
Angola é nossa – gritarei –
É carne, é sangue da nossa grei,
Sem hesitar p’ra defender,
É pelejar até vencer!
Ao invasor castigar coo’o destemor
Ancestral, deter, destroçar!
E gritar: Angola é nossa
É nossa, é nossa
Vencer, escorraçar!
Angola é nossa
Angola é Portugal!…

Desde então, António sentira que a confiança que o animava se começava a esvaziar como um balão.
Seriam os novos senhores da guerra!

MAX

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