quinta-feira, 5 de novembro de 2020

𝐎 𝐢𝐦𝐢𝐧𝐞𝐧𝐭𝐞 𝐧𝐚𝐮𝐟𝐫𝐚́𝐠𝐢𝐨 𝐝𝐨 𝐕𝐞𝐫𝐚 𝐂𝐫𝐮𝐳 𝐜𝐨𝐦 𝐦𝐢𝐥𝐡𝐚𝐫𝐞𝐬 𝐝𝐞 𝐭𝐫𝐨𝐩𝐚𝐬 𝐚 𝐛𝐨𝐫𝐝𝐨

 Lá fora ouve-se gritaria. Percebe-se que há muita agitação. A qualquer momento espera-se ordem para abandonar o navio. Receia-se ver o oceano invadir os corredores e os camarotes. Às 4 h 30 de uma noite sem sono, temeu-se pela vida. A bordo, regressaram do Ultramar três mil militares portugueses.

"Quase quatro anos de tropa, dois de Ultramar, sem incidentes. Será que vou morrer a caminho de casa?". Este era o pensamento que pairava na cabeça de muitos dos cerca de três mil militares que, na madrugada do dia 26 de maio de 1970, tentavam, a bordo do Vera Cruz, passar incólumes o Cabo das Tormentas. Foi quando, pelas 4 h 30, uma onda sísmica apanhou o paquete que os trazia de regresso a Lisboa, onde as famílias e as suas vidas os esperavam, para um recomeço, após tão longo interregno a "lutar pela pátria", em paragens africanas.


 "Percebia-se que o navio vinha a grande velocidade. Ninguém dizia nada, mas estávamos todos acordados, até que se deu aquele incrível sarrabulho. O navio não tinha levantado a proa da água, ouviram-se estrondos. Saímos dos beliches e fomos espreitar. Havia gente vestida e com a bagagem, havia soldados em calções. Estavam todos agitados, sem saber o que fazer ou esperar. Ninguém percebia bem o que se passava, embora todos tivéssemos noção que era grave. Eu estava num grupo de seis do laboratório militar e era o mais velho. Pediram-me que tomasse uma decisão. Não tive dúvidas e fui claro: 'prefiro morrer afogado, a ser espezinhado nos corredores. Quem quiser sair, pode fazê-lo já. Por mim fecho tudo e esperamos todos aqui'. Assim foi. Ninguém dormiu, mas ali ficamos, em silêncio, alertas".


Na manhã seguinte era notório que o perigo maior tinha passado, mas os mais curiosos queriam ver para crer e entender o que se tinha passado. Nos porões, a água chegou à cintura dos militares que ali se encontravam. À superfície, havia vidros partidos, estilhados do que haviam sido as vidraças da cabine de comando; muitos ferros amolgados e retorcidos, guinchos e outros apetrechos arrancados pela raiz.

Mas, sentia-se a bonança no ar. Os militares apressaram-se a pôr a secar ao sol tudo o que as águas marinhas tinham encharcado: da roupa de cama, à farda, passando pelas coloridas almofadas e tecidos chineses muito em voga no Moçambique daqueles tempos.

Aos mais perspicazes não escapou um pequeno grande pormenor: o Vera Cruz tinha mudado de rumo e navegava de volta a Lourenço Marques. Soube-se mais tarde que os danos no paquete a isso tinham obrigado.

Houve alguma desilusão, claro, mas de regresso à cidade onde tinham passado os últimos anos, houve oportunidade para gastar os "tostões" moçambicanos que restavam nos bolsos, reaver dívidas que não haviam sido cobradas, pagar umas rodadas aos companheiros de armas e festejar com um belo bitoque na Cervejaria Portugália.


O reembarque foi dois ou três dias depois, sanadas que estavam as questões de segurança, mas ninguém esperava que novo contratempo os prendesse ao Vera Cruz ainda mais do que o esperado.

Efetivamente, o paquete avistou Lisboa em noite de Marchas Populares, não tendo, por isso, autorização para atracar em Alcântara. Feliz com a chegada, mas saturados de tantos atrasos, os militares resolveram manifestar o seu desagrado lançado borda fora as enxergas em que tinham dormido nas últimas semanas. Como a maré estava a encher, na manhã seguinte o Tejo parecia uma imensa cama, coberta por milhares de colchões que durante muitos dias foram dando à costa, do cais Rocha do Conde de Óbidos, até Cascais.

Escusado será dizer que nenhum eco se fez das atribulações da viagem ou do tremendo risco pelo qual passaram cerca de três mil jovens de regresso do Ultramar. A guerra e o regime já enfrentavam oposição que chegasse no início dessa década de setenta, a ultima do Estado Novo.


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