domingo, 10 de novembro de 2019

ENCONTROS E DESENCONTROS

A convivência de cento e cinquenta homens num espaço confinado durante cerca de dois anos, em condições por vezes deploráveis, nem sempre foi fácil. Valeu a resiliência dos portugueses à adversidade e a ignorância política moldada pelo regime de então. A comida era sempre escassa, a água nem sempre estava em condições de beber, a dormida era, em alguns quartéis da Guiné, em abrigos subterrâneos. Os ataques, as emboscadas e flagelações aos aquartelamentos moldaram grupos de jovens em autênticas famílias porque sabiam que dependiam uns dos outros tal como os marinheiros num navio. Todos sabiam a vida de cada um, muitos eram analfabetos e eram os camaradas que liam e escreviam as missivas de e para a família. Foi esta amálgama de vivências que levou esses jovens, tornados homens, a reunirem-se anualmente, nos anos imediatos, em convívio para celebrarem o seu regresso, convívios que hoje, decorridos cinquenta e mais anos, continuam a juntá-los e às suas famílias.

Nenhuma guerra é um lugar bom para se viver!

Muitos dos primeiros homens a irem para a guerra em Angola têm hoje oitenta e mais anos porque depois de saírem da tropa foram de novo chamados para irem para a guerra e continuam a juntar-se sessenta anos depois! Aqui deixo a minha singela homenagem a esses VALENTES.

Os convívios foram o mote para eu escrever estas linhas.


Muitos veteranos ainda são tratados pelos camaradas pela alcunha do tempo da guerra
Realizam-se convívios de veteranos por todo o país, cada grupo referente a uma unidade militar, reunindo-se anualmente em locais diferentes conforme a morada de cada organizador, ficando esses locais combinados em cada ano para o ano seguinte.

Nota-se que quantas mais dificuldades passaram essas unidades militares mais unidos se mantêm hoje os veteranos. Por exemplo as companhias de comandos juntam quase todos os seus elementos e, como é sabido, os comandos só atuavam em situações limite.

Saliento que as informações quanto às unidades militares da marinha e da força aérea não estão facilmente disponíveis, apesar dos meus esforços junto desses ramos das forças armadas não consegui obtê-las. Por outro lado, a quantidade de unidades militares da marinha e da força aérea foi muito inferior à quantidade de unidades mobilizadas pelo exército. Assim, a quantidade de convívios também é inferior e não são publicitados como acontece com os veteranos do exército. Eu sei que existem mais convívios mas não tenho informações válidas acerca dos mesmos.

Creio que a amostra estatística, para o fim em causa, é representativa da realidade. Apesar de ninguém saber ao certo quantos convívios acontecem em todo o país durante o ano, constatei a existência de muitos mais mas sem a informação útil para este trabalho. Muitos veteranos de muitas unidades militares não voltaram a encontrar-se, outros têm o contacto de apenas alguns camaradas. Recebi informação de sete companhias que nunca fizeram convívios. É pena porque só temos uma vida e já muito curta.

Em cada convívio os familiares são mais do que os veteranos. Alguns já levam os bisnetos.

Esta análise é feita no pressuposto que os números fornecidos pelos veteranos estão certos ou muito próximo da realidade. Por outro lado, as unidades militares consideradas são só as do exército, mas não todas. Creio que podemos multiplicar por cinco os valores de despesa anual, considerada nesta análise, atendendo à quantidade de unidades militares envolvidas na guerra e a que muitos convívios nem são anunciados por ficarem combinados de uns anos para os outros.

Só no site dos “veteranos da guerra do ultramar” foram publicitados os convívios constantes na tabela C.

Considerando os 4088 veteranos e outros tantos familiares, a uma média de 30 € por cada refeição, dá cerca 245.280 €. Há a acrescentar a este valor as despesas de deslocação e alojamento as quais são superiores ao valor da refeição, pelo que a despesa global, só dos convívios de que tive informação válida, rondará o meio milhão de euros por ano.

Como estes valores se referem apenas a uma pequena parte dos convívios, creio que os valores globais serão superiores a dois milhões de euros.

Podemos afirmar que o impacto destes valores sobre a economia do país não é significativo, mas é de facto significativo para os restaurantes, por todo o país, onde decorrem estes encontros. São muitas vezes estabelecimentos com gestão familiar ou em espaços de entidades sem fins lucrativos. A minha experiência é de que existem restaurantes que não querem receber estes encontros. Houve um que me pediu 55€ por pessoa, em 2008, o que indicia que não estava interessado no negócio.

O grande impacto dos convívios dá-se sobre os próprios veteranos. É um avivar de memórias, é um exorcizar de vivências, de recalcamentos, de fantasmas, de frustrações e um repensar nos prejuízos, não contabilizáveis, na vida pessoal motivados por passarem três anos no serviço militar de forma obrigatória, enclausurados na guerra. O serviço militar, naquela época, serviu para melhorar a socialização de cada individuo, em especial os jovens do interior, e a guerra ajudou a perceber o papel que cada um desempenha na sociedade.

Ao fim de alguns anos os convívios são autênticas reuniões de família. Fala-se de tudo excepto de política, acompanha-se as felicidades e infelicidades de cada um ao longo do tempo, agora que todos temos mais de 67 anos, todos os anos falta mais um. É a vida.

É significativo que muitos veteranos ainda são tratados pelos camaradas pela alcunha do tempo da guerra, e isso implica uma carga emotiva muito grande que os faz reviver o passado.

Houve companhias formadas com um ou dois rapazes de cada concelho, pelo que hoje quando se reúnem estão sempre representados muitos concelhos e distritos do país. Tal como enquanto militares, muitos tiveram a oportunidade de conhecer usos e costumes de outras regiões, hoje essa troca de culturas regionais continua o que conduziu, e conduz, a uma maior homogeneização da sociedade.

Quando olhamos para trás no tempo custa-nos ver que fomos para a guerra enganados e continuamos a ser mal tratados enquanto veteranos de guerra. Talvez alguém esteja à espera que morram ‘mais uns quantos’ para depois muito ‘bondosamente’ distribuir mais umas migalhas pelos veteranos que restem.

Fica aqui este apontamento. Eu, como autor e testemunho, quero agradecer a todos aqueles que colaboraram com informações simples mas preciosas para que este trabalho pudesse existir.

Deixo, com carinho, a minha singela homenagem a todos aqueles que já partiram.

(Daniel Graça )– BCAÇ 2929 – Guiné 70/72
Lic. em Economia pelo ISEG – Lisboa



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